Mulheres Apaixonadas – Clara e Rafaela

“A gente ainda vai encontrar muito preconceito pela frente. Isso tá longe de acabar”

O primeiro grande casal LGBTQIA+ que o Brasil abraçou, torceu de verdade e shippou? Sim, mas não completamente. É fato que o público gostou das personagens de Alinne Moraes e Paula Picarelli e aceitou duas lésbicas em uma novela do horário nobre da Globo, mas nem tudo era flores, porque assistir garotas se beijando era querer e pedir demais dos telespectadores conservadores da época, que ainda hoje continuam por aí, tentando abafar e invisibilizar personagens LGBTQIA+ nas novelas. Mas nós estamos aqui, gays, lésbicas, travestis, transexuais, bissexuais e tantos outros que compõem essa enorme comunidade para continuarmos lutando por nosso espaço, seja ele na teledramaturgia, seja na vida. NÓS EXISTIMOS. E vamos continuar fazendo barulho.

Todo noveleiro sabe a importância que Clara e Rafaela sempre tiveram para a representatividade LGBTQIA+ nas novelas, pois foram essas duas personagens que, de maneira significativa, abriram portas para outras e outros personagens que viriam pela frente – menciono aqui, também, o bom trabalho de Silvio de Abreu com seus personagens Jefferson e Sandrinho, em “A Próxima Vítima”, que repercutiram bastante, mas que a época, década de 1990, impediu que o casal tivesse a mesma liberdade que as personagens de Manoel Carlos. Era preciso ainda mais cautela. A discussão a respeito ainda existe, e, recentemente, depois de avançarmos corajosamente, tivemos um retrocesso absurdo quando o diretor Amauri Soares assumiu a direção dos Estúdios Globo.

Com isso, para agradar ao público mais conservador, e também telespectadores evangélicos, casais homoafetivos tiveram suas tramas barradas, diminuídas e algumas até anuladas. E eu me pergunto: o que um homem como esse está fazendo nesse cargo? Também não sei. Porém, somos resistência, e não dá para retroceder, né?

Mas voltando a falar de Clara e Rafaela, as duas formam um casal bastante carismático, apesar de achar a Rafaela um pouco chatinha no início da trama, cheia de um ciúme descabido da Clara e um tanto intrometida sobre o que Clara deve ou não fazer a respeito de determinadas coisas – coisas pequenas, que, por várias vezes ela até tem razão, mas que não deixa de ser chato. Porém, ambas amadurecem muito no decorrer da novela, até porque estamos falando de adolescentes. As coisas começam a complicar para as duas quando Margareth, a mãe preconceituosa e homofóbica de Clara, desaprova a “amizade” da filha com Rafaela, e começa a agir para fazer com que Clara deixe de morar com a “amiga” e volte para casa. Então, o romance sofre um abalo quando Margareth atinge o ponto fraco da filha.

Margareth corta a mesada de Clara, bloqueia seus cartões de crédito e dá um prazo para que a filha volte para casa… e caso prefira continuar com Rafaela, Clara deverá esquecer que tem uma família. Assim, sempre acostumada a ter uma vida sem preocupações financeiras, Clara não aguenta a pressão e resolve ceder e se afastar de Rafaela, conforme a exigência da mãe, ainda mais quando Margareth a proíbe de ver a família. E é claro que sofremos tanto com Clara quanto com Rafaela, porque a separação é dolorosa e muito triste, e a Rafaela deixa Clara livre para fazer suas escolhas, porque ela nunca joga a garota que ama contra sua mãe detestável e vilã, e ela é sensata ao declarar que não quer continuar vivendo com uma pessoa que acha que está perdendo tudo estando com ela. Dali em diante, as duas enfrentariam muitos outros momentos difíceis.

Naturalmente, mesmo não morando mais juntas, as duas não conseguem ficar longe uma da outra. E a maturidade de Rafaela faz com que a relação seja paciente o suficiente para esperar o momento certo de ficarem juntas e fazer com que Clara não bata de frente com a mãe. Contudo, ao longo da trama, temos que aguentar a Margareth tentando jogar a filha pra cima do Rodrigo e destilando seu preconceito em diálogos onde ela expõe o quanto acha anormal a orientação sexual da filha e o quanto quer que Clara seja uma garota como as outras, que goste de garotos, que se case, tenha filhos e que a filha tem um desvio que precisa ser corrigido, uma doença que precisa ser curada e que já encontrou uma clínica para tratar esse tipo de desvio de comportamento.

E ela insiste para que a filha aceite passar pela cura gay, termo que nós veríamos anos depois e que é um verdadeiro absurdo.

Assim, assistir Margareth verbalizando todas essas coisas é horrível e revoltante. Porém, tudo isso faz parte da trama que aborda o preconceito contra pessoas LGBTQIA+. Como se não bastasse ter que lidar com a homofobia de Margareth, Clara e Rafaela ainda enfrentam o preconceito da Paulinha, a insuportável colega de classe homofóbica e que adora infernizar a vida das duas, uma personagem que já virou um meme da novela com suas provocações pra lá de ácidas. Assim como quase todo o período escolar, o Ensino Médio para os LGBTQIA+ é um verdadeiro infernooooooo. E com a Paulinha temos cenas memoráveis, porque Clara nunca aceita suas provocações e sempre parte pra cima. Olha, eu sei que não é com violência que se resolve as coisas, mas eu passo um pano bem grande para a Clara (rs).

“JÁ ESTÃO SABENDO DA NOVIDADE? Será montada, aqui na escola, a primeira versão gay de Romeu e Julieta. Serão duas mulheres, quer dizer, mulher mais ou menos, né? Porque mulher mesmo, de verdade, mulher normal, gosta de homem”.

A Paulinha é realmente detestável. E a interpretação perfeita de Roberta Gualda fez com que enxergássemos o quanto pode ser traumatizante para pessoas LGBTQIA+ passar pela escola. Hoje em dia um pouquinho menos, mas ainda assim é muito difícil e penoso. E eu adorei que o Maneco colocou esse lado da moeda na trama de suas personagens lésbicas. Ainda no decorrer da novela, para livrar Clara de um relacionamento homoafetivo, e enxergando que a filha não ia se distanciar da namorada, temos uma cena em que Margareth tem o impulso de matar Rafaela, quando joga o carro em cima da garota e quase a atropela na frente da escola. Pesado.

Contudo, a vilã não desiste de afastar a filha da garota que ama.

Então, ela faz coisas como ameaçar denunciar Rafaela ao Juizado de Menores – por Clara ter apenas 17 anos e Rafaela 18 –, oferecer dinheiro para que sua inimiga desapareça da vida da filha, ofender e humilhar Rafaela dentro da própria casa da garota e ainda dar umas bofetadas nela quando Rafaela rebate as ofensas ao recusar o dinheiro e lhe dizer coisas como que o que mais quer é estar com Clara e que Margareth não pode ir contra o amor, porque Clara é a pessoa que ela mais ama. Por um lado, deu uma vontade de ver Rafaela revidando a humilhação com outras bofetadas, mas, por outro lado, ela foi sábia em não fazer isso, porque tal atitude só complicaria ainda mais as coisas e poderia colocar a personagem num lugar negativo, justamente quando tudo o que a trama mais queria era conscientizar do contrário, tirando qualquer olhar negativo que a sociedade costuma ter sobre pessoas LGBTQIA+.

E, também, nunca foi da personalidade de Rafaela ser uma pessoa agressiva.

Na festa de aniversário de 18 anos de Clara, Margareth arma o maior escândalo quando vê que a filha e Rafaela estão prestes a posar para uma foto dando um selinho. Ela impede que a foto aconteça e ofende Rafaela uma outra vez na frente dos convidados. E eu adoro a postura da Clara em enfrentar a mãe e expulsá-la da festa por conta de suas ofensas e homofobia… e ela tem o apoio do pai. E é triste saber que, 20 anos depois do fim da novela, a fala de Rafaela ainda diz muito sobre o preconceito atual da sociedade – “A gente ainda vai encontrar muito preconceito pela frente. Isso tá longe de acabar”. Infelizmente, essa é uma verdade. Mas também é uma verdade que toda a comunidade LGBTQIA+ está mais forte e avançando cada vez mais – aos poucos, mas avançando.

No último capítulo da novela, após completar 18 anos e, assim, com a liberdade de decidir o rumo de sua vida, sem a interferência da mãe, Clara deixa uma carta de despedida para a família e volta a morar com Rafaela. E eu gosto desse final onde nada é uma utopia, porque Margareth continua sendo preconceituosa e não aceitando o relacionamento da filha com outra mulher. Porém, ela tem que aceitar que, agora, não controla mais a vida de Clara. Colocá-la como alguém que compreende o amor entre duas mulheres seria um final feliz utópico demais. Ainda assim, ela sabe que a culpa de ter afastado a própria filha da família é dela, porque as coisas poderiam ser diferentes se Margareth deixasse sua homofobia para trás e compreendesse que pessoas LGBTQIA+ têm o mesmo direito de amar que qualquer heterossexual.

Por fim, Clara e Rafaela continuam sendo aquele casal queridinho da comunidade LGBTQIA+, que abriu portas para conscientizar algumas mentes por aí. Era um passo importante e delicado para a teledramaturgia brasileira, que Manoel Carlos soube conduzir e discutir com tanto respeito. Quanto ao beijo gay entre as personagens, como muitos sabem, ele acontece de forma singela quando Clara e Rafaela interpretam um trecho da peça Romeu e Julieta na formatura da escola. Foi apenas um selinho, mas, para a época, aquele selinho significou muita coisa para nós LGBTQIA+. Era uma conquista, uma vitória diante de tanta luta que ainda enfrentaríamos e enfrentamos. Eu amo esse casal! E acredito que muitas pessoas também.

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